O nascimento dos grandes aglomerados urbanos no planeta trouxe consigo vários efeitos colaterais. Um deles é o grande número de cães e gatos gerados nestes centros. Com a rápida proliferação desses animais, a questão do que fazer com os considerados “excedentes” – muitos deles entregues pelos donos aos abrigos públicos – começou a entrar na pauta de discussão das autoridades. A terrível “solução” encontrada no início do século passado na ilha de Manhattan, nos EUA, foi colocar os animais recolhidos dentro de grandes gaiolas e afundá-las no East River.
No Brasil, a morte dos animais é praticada pelos CCZs, ainda que saudáveis, após período mínimo de três dias e quando não são resgatados pelos donos ou adotados. A lei 700/07 do deputado Feliciano Filho, do Partido Verde, pretende probir a prática. A discussão que se apresenta com a possível proibição é sobre o destino desses animais, recolhidos ou abandonados por seus donos.
Nos EUA, a política de eliminação durou até o início dos anos 1970, quando os primeiros programas de controle animal, tanto nos Estados Unidos quanto no Canadá tiveram início, com campanhas de castração, leis e conscientização. Três décadas dessas iniciativas nos EUA reduziram o número de mortes em mais de 50%, além de praticamente acabar com o abandono naquele país. Estudos apontam que quando o número de cães e gatos castrados atinge os 70% há um equilíbrio natural na população desses animais.
Apesar dessa abordagem ser tecnicamente infalível, já que ataca o problema pela raiz, seus resultados surgem apenas a médio e longo prazo, o que motivou tentativas de encurtar o caminho em busca de soluções imediatas, porém duvidosas. No final dos anos 1990 surgiu nos EUA o movimento “No Kill”, que se recusa a matar bichos saudáveis e aposta basicamente no controle da natalidade (castração) e na adoção. No entanto, mesmo com o grande número de abrigos do país (algumas cidades têm praticamente um por bairro), eles não conseguem promover ações em velocidade maior do que a quantidade de cães e gatos que chegam. Para poder manter um número definido de animais em boas condições de sanidade e saúde, os “No Kill” têm que negar o recebimento deles. Os animais que não encontram vagas são então entregues a alguma entidade que os receba e que, caso não consiga doá-los, se responsabiliza pela eutanásia, após determinado período.
Panorama brasileiro
Os preceitos introduzidos nos EUA e Canadá nos anos 1970 chegaram ao Brasil na década de 1990. Foi nessa época que começou a se falar em Posse Responsável de cães e gatos e castração por aqui, os dois pilares contra a o abandono e a morte desses animais que a ARCA Brasil ajudou a levantar, com a ajuda de veterinários, seminários sobre técnicas de castração e a implantação de um modelo-piloto em Taboão da Serra, SP, que hoje se espalha pelo país.
Assim, a realidade dos cães que há décadas morriam aos milhares no combate à raiva começa a se alterar por aqui, ancorada no aumento da vacinação em massa. Porém, nem todos os ventos estavam a favor. Nesse período se potencializa o “fenômeno pet”, motor da compra de animais por impulso, com grande risco de serem abandonados.
Hoje, os Centros de Controle de Zoonoses (CCZ), administrados pelas prefeituras do estado de São Paulo, matam uma média de cem cachorros e gatos por dia (número que chegou a 800, na década de 1970, apenas no CCZ da cidade de São Paulo). No estado, a população desses animais está em torno de oito milhões – numa proporção de um para cada quatro pessoas. Estima-se que 640 mil vivam pelas ruas.
“No kill” verde-e-amarelo
Em uma tentativa parecida com o “No Kill” americano, o deputado Feliciano Filho, do Partido Verde, quer proibir, por meio de um projeto de lei, as mortes nos CCZs de todo o estado de São Paulo. Quando era vereador, o político aprovou um projeto parecido na cidade de Campinas. Um dos artigos mais polêmicos – apontado por especialistas – é aquele que determina que nenhum animal pode ser eutanasiado – nem mesmo aqueles em sofrimento – sem um laudo de um médico veterinário de organização de proteção animal. Uma das fontes entrevistadas pela ARCA Brasil – e que prefere não se identificar – conta que já viu um cachorro atropelado, ferido, agonizar esperando pelo veterinário de alguma ong de proteção animal. O especialista chegou dois dias depois.
De acordo com informações da Agência Anhanguera de Notícias (AAN), o CCZ de Campinas comporta mais animais do que permite sua capacidade, situação que gera mortes por brigas. Ainda segundo a AAN, os trabalhadores do CCZ chegaram a fazer um dia de greve e mudanças na lei estão para ser implementadas. Esses acontecimentos, porém, são explicados como intriga política pelo deputado Feliciano.
A médica veterinária Cristina Magnabosco, responsável pelo CCZ de Guarulhos, que desde 1998 desenvolve ações preventivas, conta que desde 2004, quando a lei municipal de Controle de Zoonoses e Bem-Estar Animal foi aprovada em sua cidade, a eutanásia é reservada apenas para os cães em sofrimento ou agressivos, sem possibilidade de recuperação. Se a lei estadual for aprovada, os cães agressivos só poderão ser eutanasiados depois de 90 dias, se não forem adotados (em Campinas eles não podem ser mortos). Os saudáveis devem permanecer vivos até serem adotados – sem prazo estabelecido.
“Essa lei lida com o final do problema que é a eutanásia. Sem dúvida precisamos diminuir o número de cães mortos em todos os CCZs. Mas simplesmente proibir não resolve. Precisamos de políticas de castração, de identificação dos animais e de educação da população. Enquanto os proprietários não forem punidos, os animais continuarão pagando por eles”, diz Cristina.
Quem compartilha dessa opinião é a veterinária Maria de Lourdes Reichmann, pesquisadora do Instituto Pasteur de São Paulo. Segundo ela, a iniciativa da lei é válida e demonstra boa-vontade política em relação à situação dos animais abandonados ou maltratados; mas isso não basta. Ela acredita que é preciso mudar a visão que a sociedade tem deles. “As pessoas sabem que quando abandonam seu animal ele pode ser recolhido e levado para o canil. Maior ainda é a quantidade de gente que vai pessoalmente ao CCZ levar seus animais porque não os querem mais. Quem decreta a morte dos cães são esses proprietários, o canil apenas executa o ato. E garanto que os técnicos que o fazem não se sentem bem agindo assim”, afirma.
A especialista também questiona a falta de clareza na lei sobre o que fazer com os animais que antes eram sacrificados. “O texto da lei não prevê claramente o que fazer com esses animais. É claro que não há espaço suficiente para todos os cães abandonados nos CCZs, canis municipais e nem mesmo nos canis de associações protetoras dos animais. Deixa-los em ambiente apertado, sem exercícios físicos e sem passeio é permitir que sofram física e psicologicamente. No caso dos gatos, não há maior tortura do que colocar vários deles juntos, porque eles só vivem em família. Sendo de grupos diferentes, eles se vêem entre antagonistas”, explica.
Deputado diz que o CCZ não deve mais aceitar animais saudáveis. Indagado pela ARCA Brasil sobre qual destino devem ter os animais do CCZ, o deputado Feliciano defende que a instituição seja proibida de aceitá-los. Segundo ele, o simples fato do abandono de animais constituir crime deveria impedir as pessoas de abandonarem seus animais. “O ato de assumir um animal é semelhante ao de assumir um filho”, diz ele. Infelizmente, sabemos que grande parte da população do estado não pensa da mesma maneira e o fato do abandono ser crime não as impede de deixar centenas de animais desamparados, sem água ou comida, diariamente.
Em relação ao que fazer com os animais abandonados das cidades, Feliciano propõe ações de castração massiva e intensiva – a começar por cidades de 20 a 30 mil habitantes. No entanto, além de uma alegada “ação bairro a bairro”, ele não adiantou planos mais concretos em relação de como isso poderia ser realizado em metrópoles como São Paulo.
O político considera como um ponto importante do projeto o fato de ele regularizar convênios entre o Governo Estadual de São Paulo e as prefeituras e entidades de proteção animal. Outra ação contemplada na lei 700/07 é o recolhimento seletivo dos animais, como já é feito no CCZ de Guarulhos. “Nós não trazemos para cá indivíduos saudáveis se eles tiverem alguém que responda por eles dentro da comunidade onde estão, ainda que morando na rua. Nós os pegamos, castramos, identificamos e devolvemos ao local de origem. Essa pessoa que alimenta o animal é a responsável pelo que acontecer com ele”, conta Cristina Magnabosco.
Reduzir, se possível acabar, com as mortes de cães e gatos abandonados é o que todo o movimento, consciente e responsável, de proteção animal em todo o mundo persegue, incansavelmente. No entanto, as soluções não virão por decreto, mas quando a sociedade toda se mobilizar em um esforço conjunto para este fim. “Isso inclui aceitar as regras de mercado, já que com técnica adequada e gerenciamento eficiente uma castração pode ser oferecida de forma segura e por um valor muito abaixo do praticado atualmente. O subsídio público, utilizado em outros países, nos parece o caminho mais seguro e merece a atenção dos nossos valorosos representantes no legislativo”, resume Marco Ciampi, presidente da ARCA Brasil.
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